Por Rodrigo Haidar e Israel Nonato
28.10.15

Marco Aurélio: “Precisamos repensar o Supremo”

 

Por Rodrigo Haidar e Israel Nonato

Na história da República brasileira, somente cinco juízes do Supremo Tribunal Federal envergaram a toga por mais de 25 anos. Um deles é o ministro Marco Aurélio, que passou a compor esse seleto grupo há pouco mais de quatro meses, em 13 de junho. Com a promulgação da Emenda Constitucional 88, que elevou dos 70 para os 75 anos a idade de aposentadoria compulsória dos ministros, ele chegará, “se a genética ajudar e Ele permitir”, a 31 anos e um mês de atividade ininterrupta na mais alta Corte de Justiça do país.

Será então, em 12 de julho de 2021, o segundo ou o terceiro juiz a ocupar por mais tempo uma cadeira no Supremo. O mais longevo ministro foi José Paulo Figueirôa Nabuco, que ocupou o cargo por 31 anos e três meses – mas no Supremo Tribunal de Justiça, no Império. O único que pode superar Marco Aurélio na história da República é o ministro Celso de Mello, que se ficar no STF até os 75 anos terá completado 31 anos e dois meses de trabalho como juiz do Tribunal.

Seja como for, Marco Aurélio já figura no pódio dos privilegiados que por mais tempo puderam definir as balizas dos direitos fundamentais dos cidadãos e da liberdade no Brasil. Privilegiado, em termos. Porque para Marco Aurélio não há outra opção. Em sua visão, seria inadequado deixar a toga antes da compulsória porque não há cargo mais importante a ser exercido por um operador do Direito. O ministro já disse em diversas ocasiões que não advogará após deixar o Tribunal porque não gostaria de se tornar “maçaneta”, acionando o antigo cargo para abrir portas.

Talvez pelo tempo de casa, pelo próprio temperamento ou pela perspectiva de poder fazer ainda muito mais é que o ministro não mede as palavras para criticar a disfunção que vive atualmente o Supremo Tribunal Federal. “Temos 330 recursos extraordinários com repercussão geral já admitida, represando milhares de processos na origem. Há tribunais no país que têm de alugar galpões para colocar esses processos sobrestados. Se considerarmos a média anual de julgamento de recursos extraordinários, nós vamos demorar de 10 a 12 anos só para derrubar esse resíduo. Tem alguma coisa errada”, afirma.

Nesta entrevista concedida ao blog Os Constitucionalistas há duas semanas, em seu gabinete no STF, o ministro defendeu reformas, criticou os “votos quilométricos” dos colegas e se mostrou bastante preocupado com a falta de racionalidade no trabalho do plenário da Corte: “Nós precisamos ter presente que a nossa obrigação maior não é criar doutrinas com votos muito longos, mas proceder à entrega da prestação jurisdicional, afastando o conflito de interesses e, com isso, contribuindo para a paz social. Eu creio que estamos passando por um período em que teremos de caminhar para um ajuste, sob pena de haver o descrédito do próprio Supremo”.

Marco Aurélio fala com orgulho sobre a TV Justiça, que gestou em seu gabinete e acabou por sancionar a lei que deu vida ao projeto, na condição de “zelador” do Palácio do Planalto quando substituiu o presidente Fernando Henrique Cardoso na Presidência. Questionado sobre se a TV Justiça não tem sua parcela de responsabilidade nos longos votos dos colegas, o ministro brinca: “a TV Justiça, de início, deve ser responsável apenas pelas boas gravatas dos ministros e pelos bons penteados das ministras”. Depois, bem ao seu estilo, alfineta: “Se há alguém que sinta ainda a necessidade, após ter chegado ao Supremo, de construir o respectivo perfil, e lance mão da TV Justiça para isso, tem-se aí uma visão distorcida. A culpa não é da TV Justiça”.

Na entrevista, o ministro ainda falou sobre as críticas de que o Supremo legisla, reconheceu que a Corte, às vezes, beira o limite de separação dos poderes, mas defendeu a atuação do Tribunal. Criticou, também, a ideia de que os fins justificam os meios, tão em voga no país nos dias de hoje com a cruzada contra a corrupção. Para Marco Aurélio, não se avança culturalmente potencializando-se o objetivo em detrimento do meio.

Leia a entrevista

Os Constitucionalistas – Quando o senhor foi nomeado para o Supremo, a Constituição Federal de 1988 não tinha dois anos de vida. As decisões do Tribunal refletiam a cabeça da velha guarda, formada sob a Constituição de 1969. Como foi a adaptação do STF à nova Carta? Houve alguma resistência?

Marco Aurélio – Não seria nem pela Carta anterior, porque ela era uma Carta que contemplava certas garantias – salvo numa época de sítio, em que as garantias eram afastadas. Houve muito mais pela concepção de cada qual. E o Supremo passou por uma modificação muito grande na composição, já nos governos subsequentes, principalmente no governo do PT. Vieram novos valores, com pensamentos mais abertos. Eu atribuo muito mais o fato de o Supremo estar na vitrine hoje em dia às provocações que foram colocadas para enfrentarmos. Tivemos de julgar temas de interesse real da sociedade, sensíveis e polêmicos. Foram muitos, como interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, união homoafetiva, pesquisas com células-tronco embrionárias, liberdade de expressão, entre outros.

OC – O Supremo ficou mais popular?

Marco Aurélio – Ficou. E eu tenho de aludir à TV Justiça. A TV Justiça não deixa de ser um controle externo implícito sobre a atividade judicante do Supremo Tribunal Federal.

OC – O senhor sancionou a lei que criou a TV Justiça como presidente da República interino, correto?

Marco Aurélio – No jargão futebolístico, eu bati o corner, corri para a área e cabeceei para o gol. Isso porque o projeto saiu do meu gabinete no Supremo e na sanção eu estava como zelador do Palácio do Planalto, substituindo o presidente Fernando Henrique Cardoso. Eu indaguei a ele qual era o seu pensamento sobre certo projeto que chegaria para sanção. Ele me devolveu a pergunta: “Que projeto?”. Respondi: “A TV Justiça”. Ele disse, então: “Sanção e veto são seus”. Então eu pude sancionar a lei que criou a TV Justiça. Isso aproximou, sem dúvida alguma, o Judiciário da sociedade. Há muitas pessoas fora da área do Direito que acompanham a TV Justiça e veem os seus programas.

OC – Há quem critique as transmissões ao vivo do STF com o argumento de que elas deixaram os votos dos ministros mais longos, com mais frases de efeito. De que há votos que parecem feitos para a televisão. O Supremo não acaba superexposto? Já houve a ideia de que as deliberações fossem fechadas e apenas o resultado divulgado. O que o senhor acha disso?

Marco Aurélio – Já houve a ideia de que passássemos a fazer teatro no Supremo. Ou seja, que nos reuníssemos para decidir sobre a causa e depois colocássemos a capa para fazer de conta que estaríamos ouvindo o advogado e que a sustentação dele poderia influenciar o convencimento da Corte. Eu vou repetir o que sempre falei: a TV Justiça, de início, deve ser responsável apenas pelas boas gravatas dos ministros e pelos bons penteados das ministras. Se há alguém que sinta ainda a necessidade, após já ter chegado ao Supremo, de construir o respectivo perfil, e lance mão da TV Justiça para isso, tem-se aí uma visão distorcida. A culpa não é da TV Justiça.

OC – Nem mesmo pelos votos longos?

Marco Aurélio – Cabe a cada qual se policiar para otimizar o tempo, conciliando celeridade e conteúdo. Nós precisamos ter presente que a nossa obrigação maior não é criar doutrinas com votos muito longos, mas proceder à entrega da prestação jurisdicional, afastando o conflito de interesses e, com isso, contribuindo para a paz social. Eu creio que estamos passando por um período em que teremos de caminhar para um ajuste, sob pena de haver o descrédito do próprio Supremo. Hoje, por exemplo, cada gabinete está recebendo uma média de 150 processos por semana. Isso é inimaginável em termos de Suprema Corte. É só fazer um levantamento mundo afora.

OC – O senhor falava há pouco de teatro. Os números mostram que os ministros do Supremo sejam, talvez, os juízes de cortes supremas mais produtivos do mundo. Os ministros não acabam participando de um teatro ou de uma maratona, à medida que é impossível julgar oito mil processos em um ano?

Marco Aurélio – Pois é. É algo surrealista.

OC – Como o senhor faz para dar conta de um volume como esses?

Marco Aurélio – O que está na vala comum, a assessoria adapta. Eu tenho nove assessores trabalhando no gabinete. Agora, a arte de julgar, a arte de criar a tese para o caso concreto é do juiz único do gabinete. E no Supremo há dois gabinetes que têm juiz único: o meu e o do ministro Celso de Mello. Os demais têm juízes convocados, o que também é um equívoco que acabou placitado pela lei.

OC – Por que um equívoco?

Marco Aurélio – Porque se convoca o juiz que imagina deixar a vara para azeitar a carreira, e se descobre um santo na pedreira da magistratura, que é a primeira instância. Isso acaba prejudicando o cidadão.

OC – Por que o senhor é contra a distribuição antecipada dos votos?

Marco Aurélio – Eu sou contra e não aceito. Em primeiro lugar, porque sou um juiz muito sugestionável. E recebendo algo pronto eu vou ceder e colocar um predicado da magistratura, que é a formação do convencimento de forma livre, em segundo plano [o ministro ri, irônico]. É brincadeira, claro. Em 36 anos de magistratura eu nunca troquei figurinhas. Não vou trocar a essa altura da vida. Penso que isso não é bom. Eu não tenho tempo para ler e estudar como deveria os memoriais distribuídos pelos advogados. Vou ter tempo, prejudicando os processos que aguardam exame em meu gabinete, para ler antecipadamente os votos dos colegas? Não teria tempo. E considerados esses votos quilométricos, haveria o prejuízo da viúva com papel A4.

OC – Quais suas ideias para otimizar o tempo no plenário do Supremo?

Marco Aurélio – Conversamos, por exemplo, para o relator fazer no máximo um voto de dez folhas, gastando três minutos por folha para a leitura, e pedindo a juntada, se for o caso, de um voto quilométrico. Trinta minutos de voto. Por quê? Porque é incompreensível que se gaste uma sessão do tribunal para julgar um único caso. Nós temos 330 recursos extraordinários com repercussão geral já admitida, represando milhares de processos na origem. Há tribunais no país que têm de alugar galpões para colocar esses processos sobrestados. Se considerarmos a média anual de julgamento de recursos extraordinários, nós vamos demorar de 10 a 12 anos só para derrubar esse resíduo. Tem alguma coisa errada. Precisamos repensar o Supremo. Veio a repercussão geral, que é um filtro. Permite que o Tribunal diga o que quer julgar. Mas no início do instituto nós tivemos a liberação, como se toda controvérsia tivesse repercussão geral, de muitos recursos. Agora, enfrentar isso depende de cada qual, de perceber que a responsabilidade é nossa.

OC – Ao assistir às sessões, percebemos que às vezes os ministros se perdem nas discussões e acabam não fixando tese alguma.

Marco Aurélio – Sim, discute-se para não sair tese alguma. E o Tribunal às vezes é audacioso e acaba pretendendo emitir tese ou teses além dos muros do processo, dos muros objetivos da controvérsia enfrentada. Se julgar o caso concreto, com balizas, já é difícil, o que dirá ultrapassar esses limites. Colegas dizem na sessão que pretendem orientar para isto ou aquilo. Hoje o Supremo, pelo o que eu ouço de colegas magistrados, não é muito observado pela magistratura quanto aos pronunciamentos. Ou ele enfia goela abaixo, ou espontaneamente não se observam as decisões. Isso é péssimo. Nós precisamos repensar o Supremo. E aí dependemos também de reforma legislativa.

OC – O senhor já disse que o país não precisa de novas leis, mas de homens públicos que cumpram as leis existentes. Mas não há casos em que reformas legislativas se fazem necessárias?

Marco Aurélio – Sem dúvida. Aposta-se hoje, considerada a parafernália de recursos, na morosidade da Justiça. Principalmente quem está compelido a observar uma obrigação de dar, de pagar. Aposta-se na morosidade da Justiça e se empurra a obrigação com a barriga interpondo seguidos recursos sabidamente protelatórios. Veja o número de casos que nós recebemos? O que é o Supremo em última análise? Uma quarta instância? Temos o juiz na primeira instância, depois o tribunal revisor na segunda instância, de Justiça ou o Regional Federal ou do Trabalho. E aí há o Superior Tribunal de Justiça ou o Tribunal Superior do Trabalho e, após, o Supremo. É uma demasia. Claro que é importante observar-se a possibilidade de se afastar um erro de procedimento ou de julgamento. Mas, para isso, basta o tribunal revisor, que é o tribunal situado no estado ou na região. Senão, onde vamos parar? E por que não criar uma quinta instância, abandonando-se a nomenclatura Supremo? Temos aí um círculo vicioso. O ajuizamento de uma causa visa afastar o conflito, visa restabelecer a paz social momentaneamente abalada por esse conflito. Esse restabelecimento é que é projetado, ante a sucessividade de recursos, para as calendas gregas. E também não temos uma independência técnica maior do representante da parte, que é o advogado. Esse quadro todo não é bom em termos de jurisdição.

OC – Mas qual a solução? Uma proposta como a que foi apelidada há algum tempo de PEC do Peluso [referência ao ministro aposentado Cezar Peluso], segundo a qual as decisões seriam executadas após a segunda instância e os recursos para os tribunais superiores e para o Supremo se transformariam em espécies de ações rescisórias?

Marco Aurélio – Talvez. Ou pensarmos em outra solução. Por exemplo, se vem um processo para o Supremo e permanece parado, sem qualquer exame, durante um número “X” de anos, ter-se como que uma rejeição implícita do exame e o trânsito em julgado da decisão impugnada mediante o recurso. É um pensamento. Hoje, por exemplo, nós julgamos agravos regimentais em lista. Isso constrange o julgador. Para que o agravo regimental? Se formos pesquisar a percentagem de sucesso dessa via, ela é mínima. É de 0,000X%. Mas atrasa o final do processo.

OC – Sobre esses julgamentos em lista, que chamamos de “julgamentos por baciada”, o senhor costuma ser rigoroso. Em quase todos os processos o senhor aponta uma questão, pede um esclarecimento, faz uma observação.

Marco Aurélio – Eu levo a lista de agravos para casa. Para mim, é ponto de honra a fundamentação.

OC – O senhor defende o adiamento da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil?

Marco Aurélio – Não veria de forma negativa. Sou muito mais favorável a reformas setoriais como nós tivemos na CLT na época do ministro Arnaldo Sussekind, e também em relação ao Código de Processo Civil, ao Código Penal, ao Código de Processo Penal ao longo dos anos, do que criar, como se fosse a salvação, dando uma esperança vã à sociedade, um novo Código. Há um hiato muito grande entre a norma e a realidade. Esse hiato é que tem de desaparecer. Mas, para desaparecer, precisamos também avançar culturalmente. Hoje, o que ocorre? Senta-se à mesa de negociação, mas não se transige. E aí se busca o Judiciário. Quem está atravessando um período difícil em termos financeiros, então, exacerba a litigiosidade.

OC – Porque consegue rolar essa dívida…

Marco Aurélio – Até quando? Temos processos tramitando no Supremo há dez anos.

OC – O senhor tem processos liberados para a pauta há 12 anos, não?

Marco Aurélio – Já tive um número maior. Mas como se avizinhava a minha saída em julho de 2016, antes da Emenda Constitucional 88, o ministro Ricardo Lewandowski me deu preferência. De 190 processos que eu tinha em pauta, hoje devo ter uns 100. Mas, de qualquer forma, é um número demasiado. Tem votos que eu confeccionei há três, quatro, cinco e até seis anos liberados para a pauta. Isso frustra não só o jurisdicionado, que espera justiça, mas frustra também o julgador.

OC – O senhor é talvez o único ministro que fundamenta o reconhecimento ou a rejeição da repercussão geral. Por quê?

Marco Aurélio – Porque considero uma obrigação. E, veja, se quer julgar matéria de fundo no plenário virtual, que não é plenário. Eu votei contra isso. Já há quem avente elastecer mais ainda o julgamento ficto, porque não há reunião do colegiado no plenário virtual. Cada qual se manifesta para se chegar ao provimento do recurso a pretexto, às vezes, de uniformizar a jurisprudência. Mas como se pode uniformizar, se pode também rever a jurisprudência. E colegiado é um somatório de forças distintas. Nós nos completamos mutuamente. A troca de ideias deve ser a tônica. No plenário virtual não há troca de ideias. Existe quanto à repercussão geral o voto pelo ato omissivo. Ou seja, quem não se pronuncia nos 20 dias após inserido o processo, o voto é tido como admitida a repercussão geral. E na época houve proposta para que fosse o contrário, recusando-se. Eu disse não a isso e a ideia não passou.

OC – “Estamos submetidos a uma Constituição. Mas a Constituição é o que os juízes dizem que ela é”. A frase é de um discurso feito em 1907 por Charles Evans Hughes, três anos antes de ele ser nomeado juiz da Suprema Corte dos EUA. O senhor concorda com ela?

Marco Aurélio – Não. Porque há um sentido vernacular da Constituição que não pode ser abandonado. Claro que a interpretação é um ato de vontade, mas é um ato de vontade vinculado ao preceito que está sendo interpretado. Houve uma discussão célebre entre dois senadores, Pinheiro Machado e Rui Barbosa, em que Pinheiro Machado contestava o fato de o Supremo ter a última palavra sobre o direito. E Rui Barbosa disse: “Tem a última palavra e tem a prerrogativa de errar por último”.

OC – Alguém tem que ter, certo?

Marco Aurélio – Alguém tem que ter, para colocar fim ao processo. Porque senão seria um círculo vicioso, sempre cabendo recurso. Porque parte inconformada sempre se tem: aquela que perde.

OC – O senhor já afirmou que legislar em tempos de crise é perigoso. Por quê?

Marco Aurélio – Em época de crise, qual é a tendência? A prevalência das emoções, e não da razão. Por isso é que é ruim legislar em época de crise. Agora, por exemplo, nós temos um contexto em que se potencializa a visão política, o interesse político, o interesse momentâneo isolado, o interesse paroquial em detrimento do que interessa ao cidadão, ao povo brasileiro. O povo brasileiro não está preocupado com disputas, considerado este ou aquele partido. O povo brasileiro hoje está preocupado com a mesa. O que ele pode colocar sobre a mesa para alimentação da família. A crise econômica, que ainda não chegou ao pico, a meu ver é muito mais séria do que se imagina, começa a ser notada com o desemprego. Quando o desemprego alcança o que eu denomino como classe média menos afortunada, temos problemas muito sérios em termos de manifestações, em termos de paralisações em certos serviços.

OC – Nas suas palavras, vivemos uma quadra estranha?

Marco Aurélio – Muito estranha. Uma quadra em que nós notamos, e não é de hoje, o abandono de princípios, a perda de parâmetros, a inversão de valores, em que o dito passa pelo não dito, o certo pelo errado. Isso é muito ruim. Precisamos de um pacto que prestigie interesses maiores. Veio me visitar no gabinete uma bancada do Rio Grande do Sul. Recebi o presidente da Assembleia Legislativa e deputados. O que eu notei? Notei algo que precisaria ser tomado como exemplo, que é a união dos três poderes para vencer a crise econômico-financeira, inclusive com a Assembleia apoiando e implementando a aprovação de projeto impopulares, contramajoritários. O Estado está falido e as autoridades estão buscando saídas até com prejuízo do próprio perfil político. Eu brinquei com o presidente da Assembleia: “Olha, precisamos aproximar o Rio Grande do Sul de Brasília, do poder central”.

OC – No julgamento da AP 470, o processo do mensalão, o senhor dizia que o Supremo não podia se transformar em um tribunal de uma causa só. Há o risco de isso ocorrer agora com processos da operação Lava Jato, o recrudescimento de disputas políticas e ações para obstar eventual processo de impeachment?

Marco Aurélio – Não. Porque no campo penal nós tivemos uma iniciativa muito interessante. O julgamento dos processos criminais foi deslocado do plenário para as turmas, exceto processos contra o chefe do Poder Executivo nacional ou o chefe de uma das casas do Congresso. O problema maior de estagnação do plenário é um problema que diz respeito a todo e qualquer processo. Há diversas sessões em que nós ficamos no julgamento de uma causa só. Isso com advogados em plenário que vieram dos estados, muitas vezes de longe, para acompanhar outras causas que estavam em pauta e não são julgadas por conta de votos intermináveis em plenário, discutindo, muitas vezes, situações concretas de fácil solução.

OC – Isso está acontecendo com mais frequência?

Marco Aurélio – Está. Antes o Supremo não esgotava a pauta, mas julgava “N” casos. É preciso ser mais objetivo. Se não for divergir, acompanha o relator e pede a juntada do voto, no caso daqueles que levam voto pronto. Eu não levo porque aprendi desde cedo que em colegiado, se o juiz é simplesmente vogal, não é relator, tem que estar aberto, percebendo as discussões e formando convencimento. Mas para aqueles que levam voto como se relatores fossem, que juntem o voto. Agora, para divergir, sim. Aí tem de sustentar o que entende cabível. Mas, para acompanhar o relator, é incompreensível o que ocorre hoje em dia. São muitas considerações. O pior é quando o ministro esquece que não disputa coisa alguma e passa para a defesa do ponto de vista retrucando os colegas. As partes envolvidas no processo disputam, mas o ministro não.

OC – Muitos dizem que o STF deve exercer autocontenção, porque às vezes atravessa a Praça dos Três Poderes e legisla ou se intromete em assuntos do Executivo. O senhor concorda com essa crítica?

Marco Aurélio – Não. Eu penso que a autocontenção deve existir. Eu não posso negar que pelo menos em algumas situações se beirou, para falar o mínimo, a linha divisória. Mas de início nós atuamos a partir do que está no livrinho [aponta para a Constituição Federal em cima da mesa], para parafrasear o ex-presidente Eurico Gaspar Dutra. Atuamos a partir da Constituição Federal.

OC – Se há vezes em que o Supremo beira a linha divisória, há aquelas em que ele é inerte, não? Já se escreveu que o “Supremo decidiu não decidir” por ocasião do julgamento da Lei da Ficha Limpa, por exemplo. É um precedente de inércia?

Marco Aurélio – Esse precedente não pode ser levado em conta. A ação envolveu o ex-governador do Distrito Federal, Joaquim Roriz, em que o Tribunal disse: “Como não se chegou à maioria no julgamento do recurso extraordinário, se dá o julgamento do recurso como empatado e prevalece a decisão impugnada do TSE”. Esse precedente, na dicção de um grande processualista, deveria ser amarrado a uma pedra bem pesada e jogado na parte mais funda do Lago Paranoá. Para o Supremo, não há saída. Quando um processo chega ao Tribunal, nós temos de decidir, de uma forma ou de outra. Só há uma situação em que prevalece o empate, que é o Habeas Corpus, quanto ao paciente.

OC – Não há hoje um certo “experimentalismo judicial” por parte do Supremo? O julgamento ainda não terminou, mas nos debates que ocorreram no processo da descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal ficou evidente que se entende pouco sobre os efeitos de cada droga no organismo e na própria sociedade. Como pode, então, o Supremo liberar o consumo da maconha, mas proibir o da cocaína e das demais drogas?

Marco Aurélio – É uma questão que ainda está aberta e eu não sei nem como votará um juiz chamado Marco Aurélio [risos]. Confesso que estou admirado até aqui. Como se conseguiu pinçar a maconha e dizer que fumar maconha contribui para a formação da própria personalidade? Eu nunca fumei e acredito que eu tenho personalidade [o ministro ri, irônico]. Mas eu ouvi isso em plenário. O ponto é este: por que liberar a maconha e não liberar outras drogas? Será que não estaríamos, nessa liberação, atuando como se legisladores fôssemos? Eu vou repetir – e não estou adiantando meu ponto de vista – o que disse no meu voto no caso do amianto: quem pode permitir ou proibir é o Congresso Nacional.

OC – Por quê?

Marco Aurélio – Porque no dia seguinte ele pode voltar atrás. O Judiciário não pode. Eu tenho dificuldades de encontrar uma base na Constituição Federal para dizer que a Lei de Drogas, que não é uma droga, é inconstitucional no que prevê como crime o uso da maconha. O que ocorreu? Durante quase 30 anos esteve em vigor a lei anterior, que previa, quanto ao usuário, a pena de detenção. Não foi evocada como conflitante com a Carta. Aí o Brasil adaptou a legislação às convenções internacionais e afastou a pena privativa da liberdade. Previu-se advertência, prestação de serviços à comunidade e, se quiser o usuário, o tratamento ambulatorial. Hoje, vamos dizer que essa lei, que a criminalização do uso é inconstitucional?

OC – O direito fundamental à intimidade parece ser a base desse julgamento, ao menos até agora. A partir dessa premissa, suponhamos que eu seja detido portando maconha, meu amigo com pequena quantidade de cocaína e um terceiro conhecido com crack. Tudo para consumo próprio. Eu sou liberado e os outros dois, não. Isso significa dizer que o meu direito à intimidade é mais fundamental do que o direito dos outros dois?

Marco Aurélio – Pois é! Qual é a base para a distinção? Qual é o fator de discriminação?

OC – Não poderia ser o fato de que a sociedade aceita mais o consumo de maconha, enxerga as drogas como uma questão de saúde, e não de polícia?

Marco Aurélio – Mas, veja, tem de qualquer forma o efeito pedagógico. E o que ocorre? Alguém pode ser ao menos tempo agente, autor do crime, e vítima? Não! Qual é o bem protegido? A meu ver, em primeiro lugar é a saúde pública. É um problema sério. Será interessante um pai repreender um adolescente que fumou o seu cigarrinho e ele dizer: “Olha, pai, deixa disso. O Supremo já falou que não é crime”.

OC – O que também se discute neste caso, porque houve votos que entraram fundo na questão do que pode e do que não pode, quantas gramas e tal, é o seguinte: o Supremo não está efetivamente legislando?

Marco Aurélio – Eu, por exemplo, não conhecia que maconha tem gênero masculino e feminino. Aí se cogitou que é possível ter um certo número de pés do gênero feminino de maconha em casa, algumas gramas. O que faz hoje o pequeno traficante que entrega drogas? Ele sai de manhã cedo de casa com uma mochila nas costas com todo o produto que deve entregar? Não. Ele pega uma pequena dose para entregar a um consumidor, depois volta ao local e pega outra dosezinha para a entrega. Ele é traficante, mas se pego não seria enquadrado como tal.

OC – Mas, se prevalecer o que está se desenhando até agora nessa decisão, o Supremo vai descriminalizar apenas a maconha. E vão dizer que o Supremo legislou mais uma vez por conta da omissão do Poder Legislativo que, muitas vezes, não consegue formar consensos mínimos sobre determinadas matérias que a sociedade já debate há muito tempo. Isso não aconteceu em outros temas? Na falta de uma reforma política feita pelo Congresso, a reforma não vem sendo feito pela via judicial, no STF? Houve a decisão da fidelidade partidária, a do financiamento privado de campanhas eleitorais…

Marco Aurélio – Não. Se viesse a reforma, é claro que nós não teríamos a necessidade de buscar base na Constituição Federal para concluir de uma forma que atenda aos interesses da sociedade. Há situações concretas em que o Legislativo não tem interesse em definir a matéria. Não há vontade política porque eles sabem que aquilo poderá repercutir de forma negativa. Então, acaba o Supremo tendo de buscar uma concretude maior da Constituição, se valendo até mesmo de princípios abertos, como é o princípio da razoabilidade que está na Carta. Agora, nós precisamos ter muito cuidado em adentrar essa área e reservar essa forma de interpretar a situações excepcionais.

OC – Há no país hoje uma cruzada contra a corrupção. Nessa cruzada há dois pontos de vista antagônicos. Um defende que vale até deixar de lado algumas garantias legais para limpar o país. Outro que com isso se afrouxam as garantias constitucionais conseguidas à custa de muita batalha, e isso é inadmissível. Como um juiz se posiciona entre o anseio da opinião pública por justiça a qualquer preço e a percepção não leiga de que a Constituição é rasgável contanto que chegue a determinado objetivo?

Marco Aurélio – Paga-se um preço por se viver em uma democracia. E ele é módico: o respeito irrestrito ao que está estabelecido. Não se avança culturalmente potencializando-se o objetivo em detrimento do meio. Se há meio para alcançar-se o resultado, se alcança. Outro aspecto: às vezes o juiz tem de ser contramajoritário. Quando ele decide de forma harmônica com o pensamento social, é aplaudido. Quando ele decide de forma contrária, é crucificado. Nós estamos realmente atravessando um período em que às vezes se potencializa o objetivo a ser alcançado e se fecha a Constituição Federal. Um exemplo clássico e emblemático é o da prisão provisória. Dias atrás, na Primeira Turma, eu fiquei vencido em uma situação concreta em que o paciente, sem culpa formada, estava preso provisoriamente há quatro anos e cinco meses. Isso é uma enormidade. Para mim, juiz, na minha cabeça, é impensável. Há o princípio da não culpabilidade. Dá-se uma satisfação vã à sociedade. Prende-se para depois se apurar, quando a ordem natural é apurar para, selada a culpa, prender em execução do título condenatório. A população carcerária provisória chegou praticamente a 45% dos presos, quase no mesmo patamar da definitiva. Alguma coisa errada está acontecendo.

OC – O senhor concorda com a ideia de que compete ao Supremo empurrar a história?

Marco Aurélio – Não. O Supremo simplesmente atua, sem visar fazer história ou modificar a própria sociedade. O que eu penso é que nós temos um compromisso maior. E esse compromisso maior é com a Carta, é com a Constituição Federal. Tanto que ela revela que nós somos os guardas dela, Constituição. Evidentemente, nós precisamos ter uma segurança mínima. A segurança mínima está no respeito ao direito aprovado pelos nossos representantes.

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Rodrigo Haidar é jornalista. Diretor da Sapiens Comunicação. Foi editor da ConJur em Brasília e repórter do Portal iG e da revista CartaCapital. É colaborador do blog Os Constitucionalistas.

Israel Nonato é bacharel em Direito pela UnB. Estudou Direito Eleitoral e Constitucional no IDP. É editor do blog Os Constitucionalistas.

A entrevista contou com a participação de Fernanda Lohn, editora da FLohn Fotografia e membro fundador do blog Os Constitucionalistas.

Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF.



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