25.02.14
Langa, o laboratório do direito à moradia
Decidi estudar o direito de acesso à moradia adequada, previsto na seção 26 da Constituição da África do Sul. Langa, a township mais próxima da Cidade do Cabo, era um laboratório com um potencial indescritível. As townships não equivalem apenas às nossa favelas. São áreas pobres cuja imposição para residir vinha do governo do apartheid, que definiu como critério a cor da pele.
Dia 21 de março de 1985, Langa sofreu o maior massacre da história das townships. Trabalhadores marchavam em solidariedade às pessoas que perderam suas vidas durante um protesto contra o apartheid. Foi quando a força policial apareceu atirando e matando. Alguns sobreviveram. Outros foram jogados em necrotérios para que lá terminassem de morrer. Os que morreram foram embalados em sacos plásticos. A tragédia ficou conhecida como o “Massacre de Langa”.
Era ali, quase 30 anos depois, que eu estudaria o direito de acesso à moradia adequada.
Já da rodovia é possível enxergar os barracos com telhados de zinco, em fila. Também há contêiners aproveitados. É um mar de barracos agrupados em ordem, de altura e tamanho semelhantes. As vielas estreitas que ficam entre eles são um pesadelo para as autoridades, principalmente para o corpo de bombeiros. Como não é tão comum o uso de fogões, muitas vezes cozinha-se com parafina, que é espalhada em algum cômodo do barraco. Sobre o fogo, costuma-se colocar panelas resistentes. Há sempre uma com água fervendo. Por vezes, essa panela é derrubada acidentalmente por crianças, que ficam com queimaduras eternas. Tive notícia de bebês no Hospital da Cruz Vermelha enfaixados da cabeça aos pés.
Em ambientes como esse, quando falamos em direitos sociais – o acesso à moradia adequada -, nos referimos a um projeto de transformação. Em 1998, Karl Klare publicou um artigo a respeito da Constituição sul-africana afirmando que ela fundava um “constitucionalismo transformador”, comparável a um agente cuja missão é induzir grandes mudanças sociais por meio do processo político, sem violência e com base legal. Para Sandra Liebenberg, “a noção de ‘constitucionalismo transformador’ encontrou uma profunda ressonância na literatura acadêmica, na jurisprudência dos tribunais e nas campanhas da sociedade civil em prol de justiça social” (Socio-Economic Rights: Adjudication under a transformative constitution, sem tradução no Brasil).
Em Langa, fui recebido por Tata, um senhor de idade que usava um boné vermelho velho, rasgado e amarrotado tendo, pendurado nele, óculos de sol com lentes avermelhadas. Não bastasse o boné e as lentes, os próprios olhos dele eram avermelhados. A face negra cansada, de traços fortes, exibia um olhar firme realçado por um bigode que começava a ficar grisalho.
Ele falava um inglês de compreensão difícil, sentado sobre uma cadeira de plástico no meio do seu barraco, suando em bicas, enquanto olhávamos petrificados à liderança e autoconfiança que exibia ao discorrer sobre sua vida e seu negócio. De vez em quando ele nos fitava em silêncio, com os olhos em chamas.
Tata mantêm intactos muitos orgulhos, mas há um especial: a sua produção artesanal de cerveja. Esse talento, contudo, o atirou em uma controvérsia com o governo. Ele precisa ser licenciado para vender a bebida que fabrica. Todavia, acredita que isso encareceria o produto, impedindo o acesso dos companheiros. Além do que, acabaria com o seu caráter artesanal.
A casa é de uma simplicidade de impressionar. Chão batido, quase nenhuma mobília, panelas e roupas penduradas na parede e bancos nos quais se sentam seus convidados. Ele, assim como quase todos os moradores, é um Xhosa, a mesma etnia de Nelson Mandela.
Eu e Rebeca fomos convidados a beber a sua cerveja. Ele apontou para um imenso balde de alumínio, daqueles que carregamos segurando o ferro curvado posto na sua boca. O balde estava bem no meio do barraco. Tata falava da produção da cerveja enquanto espantava as moscas com o pano que carregava no ombro. “Beba!” ele disse, com aquele ar firme. Peguei o balde e entornei. O sabor lembra as cervejas de arroz. “Agora você!” – disse ele para Rebeca, que fez o mesmo.
Quando um Xhosa diz “beba!”, ele está lhe oferecendo um convite para a amizade. Segundo a sabedoria popular, a única forma de se recuperar de uma bhabhalaza (ressaca) é bebendo um litro ou dois de cerveja na parte da manhã. No entanto, uma sabedoria mais antiga ensina que a única maneira de jamais sentir uma bhabhalaza é beber sem parar, pois a dor do dia seguinte será adiada para sempre.
Outro ponto de entrada na cultura Xhosa é a dança. Nelson Mandela exibia o seu shuffle para o mundo. Para os homens, a dança simboliza o ritmo e a força. Já as mulheres mostram sua beleza com giros sensuais e gestos inteligentes. Crianças com poucas semanas de vida são ensinadas a dançar. Cheguei a aprender algumas palavras em Xhosa. Molweni: “Boa dia a todos”. Ewe: “Sim”. uMulungu: “Homem branco”. Yizapha bhuti: “Venha cá, meu amigo”. Tatamkhulu: “Avô”. Makhulu: “Avó”.
O artigo 26(1) da Constituição da África do Sul assegura o direito de acesso à moradia adequada. “A moradia envolve mais do que tijolos e argamassa. Ele exige terrenos disponíveis, serviços adequados, tais como o fornecimento de água e de escoamento dos resíduos e financiamentos geral, incluindo a construção da casa própria” – registrou a Corte Constitucional. Além disso, “não é somente o Estado que é responsável pelo fornecimento de casas, mas também outros agentes, incluindo os próprios indivíduos, a quem se deve permitir, por meio de instrumentos legais, o fornecimento de moradia” (caso Grootboom, julgado em 2000). O Estado deve criar as condições para que pessoas de todos os níveis econômicos tenham acesso.
Para que possamos falar de “casa”, precisa haver a intenção de ocupar uma moradia para fins residenciais permanentes por um considerável período de tempo. A habitação pode ser alugada, ser um alojamento, uma moradia fornecida aos trabalhadores rurais ou, claro, as habitações tradicionais. Um barraco ou outro tipo de habitação informal, como os muitos que vi em Langa é, claro, uma casa. Na verdade, os ocupantes das moradias informais são quem mais precisam de proteção contra despejos injustos.
A seção 26(2) da Constituição, por sua vez, prevê que o Estado “deve tomar medidas legislativas razoáveis no limite dos recursos disponíveis para alcançar a realização progressiva deste direito”. São medidas legislativas e administrativas a nível nacional, provincial e local.
Ao apreciar o caso Grootboom, a Corte Constitucional avaliou a razoabilidade de um programa habitacional em todos os seus níveis, concluindo que ele era deficiente por ser incapaz de proporcionar moradias emergenciais. No caso Joe Slovo, ela indicou que ao se pretender mudar uma comunidade de lugar visando melhoramentos habitacionais, obrigações positivas por parte do Estado que ofereçam acesso à moradia adequada, progressivamente e dentro dos recursos disponíveis, são diretamente relevantes ao questionamento quanto à “equidade e justiça”, fundamento da decisão de remoção desta comunidade.
O caso Joe Slovo, julgado em 2008, visava saber se, ao despejar moradores, o Ministro da Habitação e demais autoridades envolvidas tinham cumprido suas obrigações de agir razoavelmente na busca da promoção do direito de acesso à moradia adequada. A conclusão foi que sim. Para o ministro Zak Yacoob: “Os candidatos foram desalojados e removidos a fim de facilitar o desenvolvimento habitacional. As circunstâncias da sua expulsão constituem medida para garantir a realização progressiva do direito à moradia, nos termos do artigo 26(2) da Constituição”.
Pelo menos quando o despejo é para fins de desenvolvimento de programas habitacionais, não basta simplesmente a alegação de que se trata de algo “justo e equitativo” (nos termos da Lei de Prevenção contra Despejos Ilegais e Ocupações Ilegais de Terra, de 1998). Segundo Yacoob: “As medidas devem estabelecer um programa de habitação coerente, voltado para a realização progressiva do direito de acesso à moradia adequada dentro dos meios disponíveis do Estado. Os contornos e o conteúdo das medidas a serem adotadas são principalmente de responsabilidade do Legislativo e do Executivo. Deve ser garantido, contudo, que as medidas são razoáveis”.
Outra dimensão do direito de acesso à moradia adequada é o direito de não ser vítima de despejos arbitrários. O artigo 26(3) proíbe despejos sem ordem judicial. O despejo em massa precisa ser justificado, não somente quanto a ele em si, mas em relação ao fato de estar vinculado a um propósito maior de entrega progressiva de novas moradias. De acordo com a Corte Constitucional, quando o Estado toma medidas para propiciar moradias, não pode excluir de seus programas determinados grupos de forma arbitrária. Um exemplo é a decisão que determinou a exclusão de um programa habitacional emergencial de pessoas que havia sido despejadas de propriedades privadas. A exclusão era inconstitucional (Caso Blue Moonlight).
Há dois estatutos que cuidam do direito ao acesso à moradia adequada: a Lei de Extensão da Garantia de Posse (ESTA), de 1997, e a Lei de Prevenção contra Despejos Ilegais e Ocupações Ilegais de Terra (Lei PIE), de 1998. A ESTA traz formas de proteção contra o despejo de “ocupantes” de terra rural, quando há alguma forma de consentimento para a ocupação. Já a Lei PIE protege de despejo os ocupantes ilegais de terra rural ou urbana (exceto os amparados pela ESTA).
Segundo a Corte Constitucional, a data do despejo e da disponibilização de moradia alternativa deve ser anunciada, de modo a não haver solução de continuidade.
É o direito costumeiro que rege os despejos de instalações ocupadas sem propósitos residenciais. A ESTA aplica-se a pessoas que “residem”. A Lei PIE também se limita a despejos de uma “casa”, não abrangendo instalações ocupadas para fins diferentes do de moradia. Por isso, escritórios ou lojas não podem ser qualificados como “casa” para fins da proteção referida.
Mas o direito à moradia adequada exige uma longa jornada de comprometimento. Em Langa, vi sanitários públicos compartilhados pelos moradores. Como não há o suficiente, muita gente faz suas necessidades na rua. Córregos são formados pelos dejetos humanos. Não é raro ver crianças com baldes pegando água suja que será usada para cozinhar alimentos. Isso compromete o ideal de moradia adequada. Mesmo assim, o projeto de constitucionalismo transformador prossegue.
Outra lição importante de Langa foi o significado da filosofia “ubuntu”. Esse pensamento transforma tudo em algo comunitário, visando a aproximação sincera entre as pessoas. Uma pessoa estranha é, pela filosofia ubuntu, alguém que está ali pretendendo iniciar uma nova vida, repleta de significados legítimos. Por isso, precisa de ajuda. E será ajudada.
Para ilustrar, o “braai” seria para nós um churrasco. Para os sul-africanos, é o momento de celebrar a amizade, exercitar o senso de comunidade, preservar a cultura local e participar de uma manifestação de igualdade. Estive num braai em Langa e não saberia explicar exatamente o quão bem acolhido fui. Isso, graças ao ubuntu.
Um julgamento da Corte Constitucional revestido de vieses humanistas se deu recentemente, em 2011. Foi o caso Blue Moonlight. Nele, o ministro Van der Westhuizen, liderando uma decisão unânime, relembrou a prática do ubuntu, que “combina os direitos individuais com a filosofia comunitária” e é um tema unificador da declaração de direitos fundamentais.
No caso, os ocupantes estavam na ocupação há mais de seis meses. A ocupação já havia sido legal. Blue Moonlight sabia da presença dos posseiros quando comprou a propriedade. Despejar os ocupantes transformaria-os em sem-teto. Não estávamos diante de uma situação na qual o despejo seria decorrente da intenção de implementar programas de melhorias habitacionais.
Foi quando o ministro Van der Westhuizen registrou: “este Tribunal também reconheceu o conceito de ubuntu como subjacente à Constituição e à Lei PIE, sendo relevante para a sua interpretação”. Em seguida, anotou: “Somos chamados a equilibrar interesses concorrentes em forma de princípios e promover a visão constitucional de uma sociedade solidária baseada na boa vizinhança e na preocupação compartilhada. A Constituição e a Lei PIE confirmam que não somos ilhas em nós mesmos. O espírito de ubuntu, que faz parte de um profundo patrimônio cultural da maioria da população, permeia toda a ordem constitucional. Ele combina os direitos individuais com uma filosofia comunitária. É um motivo unificador da Declaração de Direitos Fundamentais, que não é nada se não uma declaração estruturada, institucionalizada e operacional na evolução da nossa nova sociedade da necessidade de interdependência humana, respeito e preocupação”.
Langa foi o laboratório inspirador para uma compreensão humana e realista da jornada do direito à moradia adequada na África do Sul. Um grande aprendizado!
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Saul Tourinho Leal, doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP, foi pesquisador-visitante na Universidade Georgetown no inverno de 2012. Seus estudos sobre Direito e Felicidade foram mencionados pelo ministro Celso de Mello, do STF, que os qualificou como “preciosos” no leading case que reconheceu o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo (ADPF 132). É membro da Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB e autor dos livros Ativismo ou Altivez? O outro lado do STF (Fórum, 2010); Controle de Constitucionalidade Moderno (Impetus: 2010); e Katiba – Vivendo o Sonho do Quênia: O constitucionalismo da esperança na África contemporânea (Impetus: 2013).
O presente artigo faz parte da série Jurisdição Constitucional na África do Sul.
Foto: Langa Township, por Greg Lumley