21.10.09

A inconstitucionalidade do projeto de lei “ficha-limpa” – O país da hipocrisia – Parte I

POR RODRIGO PIRES FERREIRA LAGO*

No dia 29/09/2009 o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral – MCCE, apresentou um projeto de lei complementar supostamente contendo as assinaturas suficientes a caracterizá-lo como projeto de iniciativa popular, nos moldes versados no artigo 61, §2º, da Constituição da República. A proposta é apresentada com a intenção de “Aumentar as situações que impeçam o registro de uma candidatura”, como consta de manifesto apresentado no site do citado movimento (http://www.mcce.org.br/). Para tanto, ainda segundo se lê do site, objetiva impedir a candidatura de “Pessoas condenadas em primeira ou única instância ou com denúncia recebida por um tribunal” por diversos crimes; “Parlamentares que renunciaram ao cargo para evitar abertura de processo por quebra de decoro ou por desrespeito à Constituição e fugir de possíveis punições”; “Pessoas condenadas em representações por compra de votos ou uso eleitoral da máquina administrativa”. Além disso, estende para oito anos o período de inelegibilidade e pretende “Tornar mais rápidos os processos judiciais sobre abuso de poder nas eleições”.

A divulgação da proposta pela mídia sugere que a pretensão do projeto é apenas de tornar inelegíveis candidatos que respondam a processos criminais e de improbidade , ainda que sem trânsito em julgado. É bem mais que isso, como demonstrado acima.

Entretanto, o projeto de lei complementar, apesar das melhores intenções de boa parcela da população signatária (supostamente mais de um milhão de cidadãos), se afigura inconstitucional, em diversos aspectos, inclusive na parte que se refere a questão da inelegibilidade dos chamados “fichas suja” – candidatos que respondam a processos criminais e de improbidade sem o trânsito em julgado de decisão. Não se debruçará ao exame da questão de eventual inconstitucionalidade formal, que seria necessária a análise se o projeto é realmente firmado “por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles”. É que a imprensa noticiou que diversos deputados já encamparam o projeto, no momento de sua apresentação, afastando a possibilidade de eventual inconstitucionalidade formal por vício na iniciativa. Mas este blog demonstrará em postagens posteriores a inconstitucionalidade material de alguns pontos do projeto de lei complementar.

Disponibiliza-se, por ora, a íntegra do projeto de lei “ficha limpa”, publicado no site do MCCE.

Leia abaixo a PARTE II desta postagem:

Uma das propostas apresentadas no projeto de lei de iniciativa popular apresentado dia 29/09/2009 pelo Movimento de Combate a Corrupçào Eleitoral –0 MCCE, perante a Câmara dos Deputados é barrar as candidaturas daqueles que respondam a açòes penais ou por atos de improbidade, ainda que não haja decisão com trânsito em julgado. Esse, aliás, é o mote do projeto de lei complementar que ganhou a adesão de diversos parlamentares (deputados e senadores). Mas esse ponto do projeto é inconstitucional, por ferir a presunção de inocência, prevista no artigo 5º, LVII, da Constituiçào da República.

Quando esse tema foi debatido pela primeira vez no Poder Judiciário, após a promulgaçào da Constituição da República de 1988, o TSE negou a pretensão. O TRE/RJ havia indeferido a candidatura a reeleição do deputado federal Eurico Miranda nas eleiçòes 2006, porque ele respondia a vários processos criminais, tendo inclusive uma sentença condenatória em açào de improbidade, pendente de exame de recurso. Acolhendo um recurso do parlamentar, o TSE deferiu o registro de sua candidatura ao argumento de que a inelegibilidade só haveria inelegibilidade se prevista em lei complementar, e que o artigo 14, §9º, da CR/88 não era auto-aplicável (veja íntegra do acórdão).

Em 2008, o TRE/PB provocou o TSE a modificar a resolução que tratava de registro de candidaturas (PA 19919), para nela inserir dispositivo a barrar as candidaturas dos “fichas suja”. Após intenso debate (leia aqui e aqui), o TSE rejeitou a possibilidade de barrar as candidaturas. Ficaram vencidos, porém, os ministros Ayres Britto (STF), Joaquim Barbosa (STF) e Felix Fischer (STJ).

A presença, entre os votos vencidos, de dois ministros do STF, animou os defensores da “causa” a provocar o Supremo Tribunal Federal. A Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB, protocolou uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 144/DF, pedindo fossem estabelecidos critérios para indeferir candidaturas daqueles que respondem a processos criminais e por ato de improbidade, ainda que sem trânsito em julgado de decisão condenatória. Mas o STF não acolheu a ação, julgando-a improcedente por 9 x 2, permanecendo vencidos apenas os ministros Ayres Britto e Joaquim Barbosa, que reiteraram os argumentos que usaram perante o TSE.

O ministro Celso de Mello, relator da ADPF 144, em brilhante e densamente fundamentado voto, sentenciou: “O que se mostra importante assinalar, neste ponto, Senhor Presidente, é que, não obstante golpes desferidos por mentes autoritárias ou por regimes autocráticos, que preconizam o primado da idéia de que todos são culpados até prova em contrário, a presunção de inocência, legitimada pela idéia democrática, tem prevalecido, ao longo de seu virtuoso itinerário histórico, no contexto das sociedades civilizadas, como valor fundamental e exigência básica de respeito à dignidade da pessoa humana”.

Ainda segundo o ministro Celso de Mello “a repulsa à presunção de inocência, com todas as conseqüências e limitações jurídicas ao poder estatal que dela emanam, mergulha suas raízes em uma visão incompatível com os padrões ortodoxos do regime democrático, impondo, indevidamente, à esfera jurídica dos cidadãos, restrições não autorizadas pelo sistema constitucional”

Em seu voto, o minsitro asseverou a impossibilidade jurídica da pretensão “porque desautorizada, não só pelo postulado da reserva constitucional de lei complementar (CF, art. 14, § 9º, c/c o art. 2º), mas, também, por cláusulas instituídas pela própria Constituição da República e que consagram, em favor da pessoa, o direito fundamental à presunção de inocência (CF, art. 5º, LVII)” (íntegra do voto do ministro Celso de Mello).

Dois fundamentos distintos, portanto, serviram ao julgamento de improcedência da ADPF. O primeiro é a reserva legal, a lei complementar, para dispor sobre as causas de inelegibilidade. E o segundo é que, ainda assim, restaria ofendido o princípio da presunção de inocência previsto no artigo 5º, LVII, da Constituição da República.

Consta do site do STF notícia sobre o voto da ministra Cármen Lúcia, não disponibilizado na íntegra: “‘Somos escravos da Constituição’, afirmou a ministra, ao acompanhar o voto do ministro-relator, Celso de Mello, pela improcedência da ADPF, por entender que, se se permitisse o veto a candidato processado sem sentença transitada em julgado, estaria transgredindo o princípio da segurança jurídica” (leia aqui).

Para o ministro Eros Grau essa causa de inelegibilidade “importaria a substituição da presunção de não culpabilidade consagrada no art. 5º, LVII, da Constituição (‘[n]inguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória’) por uma presunção de culpabil idade contemplada em lugar nenhum da Constituição (qualquer pessoa poderá ser considerada culpada independentemente do trânsito em julgado de sentença penal condenatória)”. Asseverou ainda que ao se impedir a candidatura  de quem não tenha contra si uma decisão condenatória com trânsito em julgado “Prevalecerá então a delação, como ocorreu por longo tempo na velha Roma” (íntegra do voto do ministro Eros Grau).

O ministro Marco Aurélio aderiu expressamente aos dois fundamentos para rejeitar a ADPF, tanto por ausência de lei complementar, como em razào da presunçào constitucional de inocência até o trânsito em julgado. Leia-se a notícia sobre o seu voto, não disponibilizado ainda: “’Subscrevo na totalidade o voto do relator’, afirmou o ministro. Segundo ele, ‘há um compromisso muito sério do STF com princípios, com a arte de afastar o justiçamento’” (leia a notícia aqui).

O ministro Gilmar Mendes foi além, rememorando a história de Jesus Cristo, para justificar a impossibilidade de se impedir uma candidatura de quem não tenha contra si uma sentença condenatória com trânsito em julgado. Leia a notícia sobre o seu voto, que deverá ser disponbilizado apenas com a íntegra do acórdão: “Gilmar Mendes traçou um paralelo entre a posição da opinião pública sobre as candidaturas de réus em ações judiciais e o comportamento do povo na crucificação de Jesus Cristo, ao pedir sua condenação sem que houvesse nele dolo. ‘Isso era contrário do que se pressupõe na democracia crítica, porque (aquela democracia) era totalitária e instável, portanto extremista e manipulável’, destacou” (leia a notícia aqui)

O ministro José Antonio Toffoli, que ocupará a cadeira deixada pelo ministro Menezes Direito, foi chamado a se manifestar sobre o tema, ainda como Advogado Geral da União, assentando que “O critério de que apenas cidadãos que tenham sentença condenatória transitada em julgado (definitiva) podem ter o registro de candidatura negado é um parâmetro objetivo” (leia notícia sobre sua manifestação).

Leia mais sobre o voto do ministro Ricardo Lewandowski.

É certo, portanto, que os ministros do STF acolheram as duas teses, apontando a impossibilidade de se barrar candidaturas de quem não tenha contra si decisão condenatória com trânsito em julgado. Portanto, mesmo que prevista em lei complementar, a causa de inelegibilidade permanecerá em afronta ao texto constitucional, por ofensa ao princípio da presunção de inocência (CR/88, 5º, LVII). A pretensãó do MCCE, embora se louve a iniciativa, deverá ser rechaçada pelo STF, se vier a ser aprovada pelo Congresso Nacional.

__________
* Postado originalmente no Blog do RODRIGO LAGO, em 29/09/2009 (Parte I) e 01/10/2009 (Parte II).



8 Comentários

  1. Jonathan disse:

    Pois é, se já é triste o país precisar de uma lei pra impedir criminoso de ocupar cargo político, o que dizer daqueles que, quando vem a lei, defendem sua “inconstitucionalidade”?

  2. rpflago disse:

    Caro Jonathan,
    Em Mato Grosso foram afastados juízes e desembargadores por venda de decisões judiciais. O presidente do TRE do Amazonas também. Decisões da Justiça Eleitoral teriam sido vendidas ou trocadas por favores nada republicanos. Será que é justo considerar inelegíveis os que foram condenados nessas circunstâncias?
    Continuo certo que é melhor vivermos em um Estado Democrático de Direito.
    O Congresso Nacional deveria é reduzir o tempo de duração dos processos, aperfeiçoando a máquina judiciária. Em vez disso, somente por pressão popular, resolveu antecipar os efeitos da pena. E isso é grave.
    O pior é que o projeto popular de lei pretendia alcançar mensaleiros (denúncia recebida pelo STF), que foram excluídos na última hora. Ainda se diz que as alterações não foram causuísticas. Será que era lícito ao Congresso Nacional absolver alguns, e condenar outros?
    Esses temas serão objeto de artigo que pretendo escrever em breve. Inclusive pretendo enfrentar a tese de que se trata de mero critério, e não de pena.
    Respeito a sua posição, mas prefiro defender a Constituição.
    Convido-o a enriquecer esse debate, mesmo que defendendo tese contrária à minha ou à sustentada pelos ministros do STF.
    Agradeço a contribuição.
    Rodrigo Lago

  3. Osmar Golegã disse:

    Perfeito o texto. Mas perfeito de magnitude tremenda. Muito me entristece ler na mídia que não estão tratando sobre a presunção de inocência no tocante à inconstitucionalidade desta maldita Lei Ficha Limpa. Digo maldita porque infelizmente no Brasil a população só aprende a não ter determinadas atitudes, como de votar mal, se for por lei, ao invés de ser por costume moral individual.
    Desde a promulgação desta lei que venho pregando contra ela no meu meio social e explicando o porque disto, explico que sou contra porque é inconstitucional e que o STF deveria tomar a famosa decisão impopular e decidir da mesma maneira, não se deixar levar pelo clamor popular. E de tanto falar sobre isso, vejo o STF esvaziando meu discurso, mas com este texto vejo-o novamente se encher e pregar contra uma boa lei, sim é boa, mas infelizmente não se coaduna com o estado democrático de direito.

    Finalizando, sou advogado e defendo que esta lei vá para o lixo e o brasileiro pense melhor em quem vota, vide candidatos caricatos e etc.

    Parabéns pelo texto com belo teor de informação!

  4. celia simião disse:

    É uma pena que os brasileiros não estudam… estude a constituição. O congresso é burro, não conhece a constituição. Não sabe o procedimento correto de elaboração de leis. Esbararam em clausulas pétrias. Incontitucionalidade material. O STF é guardião da CF. Ele não julga interesses de classes. Estudem.

  5. […] O tema da Lei da Ficha Limpa logo despertou interesse no mundo acadêmico. O blog Os Constitucionalistas publicou vários textos sobre o tema (clique aqui). O primeiro deles foi publicado exatamente no dia seguinte ao protocolo do projeto de lei no Congresso Nacional (clique aqui). […]

  6. Eduardo disse:

    Sou um pouco cético quanto a tudo isso.
    Concordo com a Eminente Ministra Carme Lúcia. JUIZ é escravo da LEI. O Povo direta ou indiretamente, por meio de representantes, cria a lei para que eles dêem eficácia.
    Quanto à presunção de inocência, penso ser mera retórica quando se diz que um indivíduo CONDENADO em primeiro grau é inocente. Antes, até posso pensar no caso. Depois de condenado, mantê-lo inocente é retirar ao juiz de primeiro grau sua atribuição também constituição.
    O jurisdicionado tem a presunção de inocência até o “decisum”, depois disso há o direito de recorrer, que não é presunção de inocência, se é que entendo alguma coisa.
    Se em concurso público um cidadão qualquer passa por uma “investigação social” quem dirá um pleiteante de cargo POLÍTICO?
    A Carta Constitucional já foi alterada diversas vezes no país que já deveria saber mais que outros, que ainda estão na primeira, que ela é efêmera e modificável.
    A cláusula pétrea é pétrea até onde o povo diz que seja!
    É pueril e inconsistente mas é minha opinião!

  7. rbneves disse:

    Eu só queria lembrar uma coisa para os senhores, as atrocidades cometidas na Ditadura estavam travestidas de legalidade e moralidade. A Constituição que temos pode ser um sonho nunca a ser alcançado, pois todos sabemos que não reflete a realidade, mas na minha opnião não podemos abandonar os valores nela insculpidos a pretexto de corrigir toda a nação, como se isso fosse se tornar realidade. Temos milhões de eleitores que sabem que seus candidatos são “ficha suja” e ainda votam neles. Temos uma produção em massa de políticos corruptos, que apesar de não serem exclusividade nossa, é algo como uma especialidade. E não sei se vocês leram a lei, mas ela já veio com o buraco pros ratos fugirem, no seu artigo 16 se me lembro bem, onde o acusado pode pedir liminarmente no RE e Resp que não ocorra a inelegibilidade, com a condição de que haja possibilidade de que o réu seja inocente. Sinceramente, não sei se vai ter muito Relator que, depois de conhecer o recurso, vai negar esse pedido.
    Entre uma lei que se diz moralizadora, e que só vai funcionar para quem não tem um bom advogado, e a Constituição, eu fico com a segunda.

  8. rbneves disse:

    Corre;áo do comentário acima, é o artigo 26-C adiconado a LC 64/90:
    “Art. 26-C.  O órgão colegiado do tribunal ao qual couber a apreciação do recurso contra as
    decisões colegiadas a que se referem as alíneas d, e, h, j, l e n do inciso I do art. 1o poderá, em caráter cautelar, suspender a inelegibilidade sempre que existir plausibilidade da pretensão recursal e desde que a providência tenha sido expressamente requerida, sob pena de preclusão, por ocasião da interposição do recurso. 
    § 1o  Conferido efeito suspensivo, o julgamento do recurso terá prioridade sobre todos os demais, à exceção dos de mandado de segurança e de habeas corpus. 
    § 2o  Mantida a condenação de que derivou a inelegibilidade ou revogada a suspensão liminar mencionada no caput, serão desconstituídos o registro ou o diploma eventualmente concedidos ao recorrente. 
    § 3o  A prática de atos manifestamente protelatórios por parte da defesa, ao longo da tramitação do recurso, acarretará a revogação do efeito suspensivo.”